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Com quase 60 anos de carreira, Leonardo Villar brilha, mais uma vez, no elenco de ‘Chega de saudade’



Artur Xexéo

Foi em 1946. O alfaiate Leonildo Motta tinha acabado seu teste para entrar na Escola de Arte Dramática (EAD), em São Paulo, quando ouviu Cacilda Becker, uma das integrantes da banca de examinadores, virar-se para o crítico Décio de Almeida Prado e vaticinar: “Acho que ganhamos um ator”. Nos últimos 62 anos, Leonildo virou Leonardo, trocou o Motta por Villar e não fez outra coisa a não ser provar, para muito além das paredes da EAD, que Cacilda tinha razão. Foi assim, em 1958, no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), quando protagonizou uma montagem histórica de “Panorama visto da ponte”, de Arthur Miller.

Foi assim, em 1962, quando estreou no cinema como o Zé do Burro, de “O pagador de promessas”, de Anselmo Duarte, interpretação que fez o cineasta François Truffaut escrever no “Cahiers du Cinéma” que ele estava entre os sete melhores atores do mundo. Foi assim em 2000, quando viveu o reservado revisor Pascoal na novela “Laços de família”, de Manoel Carlos, arrancando, diariamente, lágrimas dos espectadores da Globo.

E se, com todo esse currículo, alguém ainda duvida de que Cacilda Becker acertou na mosca ao avaliar o teste de Leonildo Motta, a nova prova estará nas salas de cinemas a partir de amanhã, quando estrear o novo filme de Laís Bodansky, “Chega de saudade”. Vai ser difícil encontrar nas telas, este ano, uma interpretação mais emocionante do que a de Leonardo Villar.

No filme, todo ambientado numa gafieira paulista, Leonardo é Álvaro, um velho rabugento que, na mocidade, brilhou naquela pista de danças ao lado de Alice (Tônia Carrero). Eles formam o primeiro casal que entra no salão onde se realiza o baile Chega de Saudade, no qual, quase em tempo real, acontecerá toda a ação do filme. Álvaro tem uma perna quebrada, precisa de ajuda para se locomover e reclama o tempo todo; Alice sofre os primeiros sintomas do mal de Alzheimer. Parece triste? Não é, não. É enternecedor.

A certa altura, o casal é convencido a rodar mais uma vez na pista de dança. Álvaro e Alice não são mais os exímios dançarinos de outros tempos, mas é quando se enlaçam no salão, ao ritmo de uma orquestra, que ainda exibem resquícios de sua juventude. É impossível segurar o choro. Na exibição do filme no último Festival de Brasília, a platéia aplaudiu Leonardo Villar e Tônia Carrero no meio da cena. Foi mais do que merecido.

Villar é um ator de teatro, mas sempre se deu bem no cinema. Depois de “O pagador de promessas”, que trouxe a Palma de Ouro do Festival de Cannes, fez “Lampião, o rei do cangaço”, de Carlos Coimbra; “A grande cidade”, de Cacá Diegues, “A hora e a vez de Augusto Matraga”, de Roberto Santos...

— Ah, o Matraga... Matraga é minha paixão — diz ele, na sala do apartamento onde mora, há 43 anos, em Copacabana.

A declaração surpreende por vir de quem recebeu com Zé do Burro todas as glórias que um ator pode ter. — Zé do Burro é um personagem linear. Matraga tem nuances — afirma, explicando sua preferência pelo personagem tirado do conto de Guimarães Rosa. Zé do Burro ou Matraga, Leonardo Villar sempre acerta no cinema. E acertou outra vez em “Chega de saudade”. — É um filme diferente, difícil. Não sai daquele ambiente. É como “O pagador...”. Todo no mesmo ambiente. Mas “O pagador...” é na rua, aberto. Esse é todo num lugar fechado. Estava com um pouco de medo. O medo não o impediu, no entanto, de aceitar o convite para integrar o numeroso elenco do filme. — Gosto de fazer cinema.

Adoro. Li o roteiro, gostei. Vi o elenco, gostei. Já tinha assistido a “Bicho de sete cabeças” (o filme anterior de Laís Bodansky) e achado ótimo. Não tinha motivo algum para recusar. Não que Leonardo Villar aceite qualquer papel. Ele acaba de recusar, por exemplo, o convite para trabalhar em “Água na boca”, a novela que o diretor Déo Rangel está preparando para estrear em maio na Rede Bandeirantes. — Pela sinopse, pode ser uma grande novela.
Mas eles estão começando. Vi que não tinham estrutura para dar a um ator, principalmente na minha idade (Villar está com 84 anos), o conforto de que a gente precisa. Além disso, eu teria que abrir uma firma. Eles só trabalham com firma. Nunca tive firma. E eu não vou abrir uma só para fazer novela na Bandeirantes. O ator tem aparecido mais no cinema e na televisão do que no teatro, onde teve sua formação.

Sua última novela foi a recente “Pé na jaca”, de Carlos Lombardi, na Globo, e, no cinema, é um dos queridinhos da Retomada, tendo trabalhado em “Ação entre amigos”, de Beto Brant, e “Brava gente brasileira”, de Lúcia Murat. Mas no teatro, seu último espetáculo foi “A moratória”, de Jorge Andrade, numa montagem de 2001. Na ocasião, Leonardo Villar estava há quase dez anos sem fazer parte de um elenco teatral. — Eu tenho muito convite para fazer teatro. Mas as coisas que aparecem não são para mim. São papéis de caras com 60 anos, com grande vigor, papéis de galãzão. Não dá mais. Só Procópio Ferreira fazia isso com essa idade. Ninguém escreve mais papel para velhos.


Villar diz que teatro perdeu sua magia

O ator ainda planeja protagonizar uma nova montagem de ‘A morte do caixeiro-viajante’, de Arthur Miller

Leonardo Villar é da estirpe do TBC, a companhia que forjou a mais influente geração de atores de teatro do Brasil. Acostumado a atuar em montagens de Arthur Miller, Tennessee Williams, Dias Gomes, Jorge Andrade, ele gosta de peças realistas, de ação. — Gosto de fazer papéis que mexam comigo. Papéis que me façam chorar, que me façam ficar com raiva.
Ele ainda sonha em protagonizar “A morte do caixeiro-viajante”, de Miller.

— Estou com a idade certa para fazer o personagem. “O elenco do TBC era uma família” O teatro de Leonardo Villar é o que ele conheceu no TBC. — Não gosto de falar muito sobre isso. Vão dizer que é saudosismo, que eu estou velho. Mas as peças tinham dez, 15 atores, cenários... Hoje em dia, é um telão lá atrás e alguns acessórios. Tirou um pouco da magia. Tem que ter um texto muito bom para te segurar. Porque espetáculo não tem.

E continua: — O elenco do TBC era uma família. Chegávamos no teatro às 11h. Ensaiávamos até às 18h o espetáculo que ainda estava para estrear. Jantávamos lá mesmo e, depois, fazíamos o espetáculo que estava em cartaz. Cada ator tinha um camarim. Tinha um sofá-cama para descansar. Sinto saudades disso. Longe do teatro, sem novos planos para o cinema e sem abrir firma para voltar a fazer TV, Leonardo Villar segue sua rotina em Copacabana. Ele também mantém um apartamento em São Paulo, cidade onde mora toda a sua família. — Antigamente, passava três ou quatro dias por mês em São Paulo. Agora, fico no Rio por uma semana, 15 dias, e, em São Paulo, passo um mês, um mês e meio. Lá tem chácara, fazem festa, tem aniversário...

O ator acorda tarde e vai para a rua. — De dia, eu bato perna. Adoro Copacabana. Não vou sair daqui. Conheço todo mundo há duas gerações. Lá pelas sete da noite, é hora de se recolher.

— É quando começo a tomar meu vinho, meu uísque... Até meia-noite, Leonardo Villar dedica-se à televisão. Assiste a todos os telejornais, à novela das 8, e sempre confere as atrações da TV espanhola. — Eles têm muito programas de flamenco. Aí, meu sangue espanhol vem à toda. Meu pai era cantor de flamenco. Desligada a TV, Villar mantémse acordado por mais três horas, lendo na cama. Atualmente, as madrugadas são dedicadas a uma biografia de D.Pedro II. No dia seguinte, acorda tarde, não lê jornais (“eles repetem tudo que já vi na TV”) e volta a bater perna em Copacabana.

Pode estar afastado dos palcos, mas sabe que é um homem de teatro. Hoje, não é capaz de entender por que fez aquele teste na EAD. — Não sei o que fui fazer lá. Eu não conhecia teatro.

De educação formal, só completou o ensino fundamental. O que sabe, aprendeu na EAD. — Tinha que estudar português, francês, estética teatral, mitologia greco-romana e as peças que eles davam para a gente ler. Eu me formei com notas baixas, mas não repeti de ano. Foram muito condescendentes comigo. A rigor, eu não teria me formado. Da EAD, Leonardo Villar foi para o TBC, onde estreou, em 1950, como figurante em “Seis personagens à procura de um ator”, de Pirandello. Nunca mais deixou o teatro. — Perdi um casamento. Ela era minha namorada de infância, de Piracicaba. Desmanchou o noivado no meu primeiro ano de teatro. Isabel é o grande amor da minha vida.

“Depois dos 40 anos, é muito difícil você se casar”

Leonardo Villar fala da exnamorada no tempo presente. Isabel tornou-se professora, continuou em Piracicaba e também não se casou. É cinco anos mais moça do que ele. Os dois ainda conversam, por telefone, todas as semanas. O fim do romance selou uma vida de solteiro. — Depois dos 40 anos, é muito difícil você se casar. A gente fica acostumada com a liberdade. Se você tem que viajar com sua companhia, bota a chave no bolso e vai embora. Acho que eu fiz bem. Não me ressinto de não ter tido minha família, meus filhos... Mas tenho 35 sobrinhos, que me adoram, e 70 sobrinhosnetos. Sou pai deles todos. Se eu tivesse filhos, não seriam tão bons quanto eles. Quando entrou no TBC, o alfaiate Leonildo Motta possuía um ateliê, onde empregava 15 pessoas. Fazia retiradas mensais de 40 mil cruzeiros. Dois meses após tornar-se Leonardo Villar e assinar um contrato de oito mil cruzeiros por mês com a companhia, fechou o ateliê. Nunca se arrependeu. — Deixei de ser um alfaiate rico e infeliz para me tornar um ator velho, que não é rico, mas é muito feliz.

Fonte: O Globo - Segundo Caderno - 20/03/08.

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